A vontade é de gritar. Gritar bem alto pro mundo todo ouvir minha indignação. Minha revolta ou, talvez, o meu desdém. Estou passada. E o sono?!?... Muito sono. É fuga! Vontade de dormir e esquecer tudo o que aconteceu. Tudo o que eu vi. Ela caindo na minha frente e aqueles idiotas a abanando como se ela fosse acordar a qualquer instante. IDIOTAS! Ela morreu e ninguém se tocou. Ninguém percebeu. Eu vi que ela não estava mais respirando, tirei o pulso. Nada. Estava tudo parado. Naquele instante o mundo parou (...) 10 segundo eram 10 minutos e os cinco minutos que esperamos a ambulância chegar, duraram horas. Eu não acreditava. Na verdade, na hora em que ela caiu na minha frente, fiquei com ódio. Com raiva, vergonha. Puta! Que bosta! Acabamos de chegar e a outra vai dar bafão! Foi o que eu realmente pensei. Achei que ela tivesse caído, tropeçado e para disfarçar tivesse fingido que desmaiara. Mas daí ela não acordava. Ela deve ter ficado com muita vergonha! Tanta vergonha, que preferiu morrer mesmo do que voltar naquele lugar horrível, cheio de gente suando, dançando, dançando, tentando esquecer dos seus problemas pessoais. Primeiro ela só desmaiou. De vergonha por ter caído. Depois ela morreu... de vergonha de estar viva! Vergonha! Pois o que ela passava não era vida. Era um tormento. E ela disfarçava tão bem. Ela sim era uma verdadeira artista. Fingia estar bem quando não tinha o que dar de comer pro filho. Só macarrão! Ela falava. Não agüento mais macarrão! E dançava. E sobrevivia da forma que podia. Tentando viver. Tava ficando roxo o pescoço, o peito, a canela... E o povo abanando...Não tive muita ação. Liguei pro meu irmão pra perguntar o que fazer. Ele podia ter me dito: enterrar! Mas não, disse que era para fazer a massagem cardíaca, ou seja lá qual é o nome que isso deve ter. Quem faz medicina é ele e no momento eu entendi o recado. Falei para eles colocarem ela no chão, cabeça para trás, 15 apertos no peito (lentamente) e 2 sopros (aquela história de salva-vidas bonitão beijando a mocinha que se afogou na praia). Mas ali, o caso era diferente. Um cara apertava o peito dela, eu contava e assoprava. Quando a ambulância chegou, ela já estava roxa. Eu sabia que não havia mais volta. Mas mesmo assim eu menti. Todo mundo veio me perguntar como ela estava e eu disse que ela iria ficar bem. Menti! Achei melhor. Eu não queria dar a notícia. Os para-médicos se entreolharam e ligaram para o médico. Eles não fizeram nada. Nada!!! Só ligaram pro médico vir confirmar que ela havia morrido. Colocaram ela na ambulância. Enquanto isso, todo mundo ficou em volta, chorando, torcendo para ela melhorar. (Melhorar o quê?) Até eu cheguei a pensar que ela pudesse voltar a viver. Sei lá. Acho que estava esperando um milagre. Apesar de eu não acreditar muito nisso! Eu estava como ela. Fria. Uma pedra de gelo, de tão séria e fria. Quando o médico deu a notícia, mais friamente que minhas ações, todo mundo começou a chorar aquele choro desesperador de quem ficou histérico de repente. Eu não. Algumas lágrimas rolaram, mas eu não podia chorar. Tinha que fazer muitas coisas. Consolar quem estava chorando, por exemplo. Conversei com o médico de igual para igual. Na mesma frieza e intocabilidade. Mas, morreu do que? Eu perguntei. E ele respondeu: Morreu. Ela morreu. Não dá pra saber do que. Do coração deve ser. Morreu. Só morreu. Essa frase dele foi demais. Só morreu. E eu ficava olhando para ele pensando. Só morreu? Mas, nem mais uma coisinha? Normal, para a vida dele. Mas para a minha, não. Quero ver ele dar a notícia para mulher que o seu próprio filho, “só morreu”. Falou desse jeito porque não era com ele. Não conhecia. Mas um pouquinho mais de tato não faria mal. Todo mundo ficou indignado com ele. Foi uma gritaria, choradeira. Todo mundo berrando. Não! A Marta não! Ai meu Deus por que você fez isso? Justo com a Marta! Não! E eu só fiquei olhando. Não participei do barulho. Achei que era sonho e que dentro de alguns minutos eu iria acordar. Mas eu não acordei. Fui dirigindo até a Acesf. Tentando acalmar as outras amigas, falando coisas bonitas, coisas de Deus. Mas no fundo, naquele momento eu nem acreditava mais em Deus. Eu não sabia mais. Estava muito confusa. Estava fazendo igual à Marta. Atuando...